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domingo, 4 de setembro de 2022

Artemis: a vida que se desenrola

    No final dos anos 80, meus pais iniciaram um processo de divórcio turbulento que culminou com o suicídio de meu pai. Além do luto mais evidente, comecei a processar outras lacunas: não conseguia me lembrar, por exemplo, de nenhum abraço deles. As melhores lembranças giravam sempre ao redor de festas e viagens.

    Tive um pai que viveu a vida mergulhado em silêncio e uma mãe que só enxergava a própria imagem no espelho. A partir deste repertório, comecei a desenrolar o meu próprio enredo de vida - e, no meu caso, a vida não teria se desenrolado como planejei se eu não tivesse me reconhecido, antes de mais nada, como órfã de pai e mãe.

    Embora minha mãe ainda esteja viva, hoje em dia não temos contato. Pode parecer uma afirmação dramática, mas na verdade digo isso com muita naturalidade. A distância foi um fator essencial para que eu me tornasse uma pessoa mais feliz do que era antes, quando ainda me esforçava para cumprir o script de família “normal”.

    Ninguém pode escolher os pais que tem, mas todos nós podemos escolher o caminho que gostaríamos de trilhar. Com a ajuda da psicanálise e outras ferramentas, quem tem relações tóxicas com pai/mãe é perfeitamente capaz de criar todas as condições necessárias para se libertar e viver uma vida mais saudável. 


Artemis




    
    Querida Artemis, 

    Que sofrimento e, ao mesmo tempo, que beleza! Seu depoimento é tocante, conciso e muito bem escrito. Uma lição de vida e um alento para quem padece, talvez sem saber as razões. 

    Muito obrigada por compartilhar o seu belo caminho para a libertação. 


    A batalha #MeTooMãeTóxica continua. Até mais, este espaço é seu!

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Marisa: "Sempre é tempo"

    Meu problema com a minha mãe tóxica foi sempre amá-la muito, isto é, sem perceber, me colocar diante dela como a menininha que não entendia por que a mãe a espezinhava; e se atribuia a culpa, "algo eu devo ter feito que provoca, na minha mãe, essa reação de raiva por mim". 

    Mas o tempo passou, e muita psicanálise depois, enfim encontrei um analista desses que falam - não apenas pretendem, como o psicanalista, nos levar a falar o que talvez nunca tenhamos a coragem de reconhecer, quanto mais verbalizar. Enfim, esse analista - linha cognitivo-comportamental, rapidamente me disse o quão narcisista é essa mãe, e o quanto eu me comporto como menininha diante dela, eu imbuída do narcisismo infantil de um dia quem sabe conseguir me fazer merecedora do seu amor.

     Finalmente, eu pude me reconhecer como uma adulta que tem uma mãe que jamais vai me amar, pois só ama a si mesma. E tanto, que, o quanto mais eu me mostrar meritória dos seus elogios, mais ela me espezinha - porque me inveja: "espelho espelho meu, por que a Marisa é tão mais idônea, forte, corajosa e generosa do que eu?" 

    Estou liberta da menininha que amava tanto a mãe que não se permitia crescer para não despertar a sua inveja. Da menininha que sempre se perguntava "por que quanto melhor eu faço, mais ela me odeia?" 

    Hoje, finalmente, eu gosto de mim sem mais implorar pela aprovação dela. Fica um gostinho de tristeza? Claro que sim.... Que pena eu ter tido e ter essa mulher tão precária como minha mãe. Mas, finalmente ter podido reconhecer a sua precariedade, como pessoa, me deu uma liberdade existencial incomensurável. 

    Eu renasci como sempre deveria ter sido, desde o meu nascimento. E ainda é tempo!

Marisa




    
    Querida Marisa, 

    Em primeiro lugar, quero lhe agradecer. Você é a primeira leitora a participar deste blog. E abre esta colaboração, com brilho! Mostrando que é, de fato, uma pessoa corajosa, idônea, forte e generosa, cuja experiência certamente levará outros, como você, a procurarem auxílio.

    A sua mensagem é, principalmente, uma luz de esperança para quem ainda não conseguiu "matar" um genitor tóxico, para encontrar a salvação e poder renascer, segundo as suas palavras, "como sempre deveria ter sido, desde o nascimento". 

    Você escolheu muito bem a palavra "precariedade". Ela define perfeitamente o caráter de certas pessoas nas quais - às vezes nem mesmo por falta delas e sim de seu passado, relações parentais e neuroses - não podemos depositar nenhuma confiança. 

    Tenho certeza de que a sua relação com a sua mãe ficou muito mais fácil, e o seu amor por ela ficou mais claro e definido pela distância, desde que você a "matou". Parabéns!

    A batalha #MeTooMãeTóxica continua. Até mais, este espaço é seu!

sábado, 27 de agosto de 2022

"Não basta "matar nossos pais", para nos tornamos adultos. Precisamos, antes, matar a criança de nossos pais, para sermos fiéis - na maturidade - àquele rebento que sempre fomos de verdade. Esta é a maneira mais difícil, porém a única, se quisermos manter ótimas e distanciadas relações parentais." (S.L.)


"Psicólogo: 'indivíduo que entende bastante da alma humana, embora não seja formado em psicologia'." (Dicionário)

    

   Criei este blog em 2010, para dialogar com os leitores, de maneira rápida e concisa, sobre o amor, a vida e a arte. Pensei que seria um grande egoísmo deixar de usar a minha experiência, enorme trabalho, "alta" em análise (praticamente didática) e não trazer, talvez, alguma resposta útil a certas questões de quem me oferecesse a sua confiança. Foi exatamente este sentimento que me guiou na criação de meu livro, que acaba de ser lançado.

    "Querida Sheila" durou apenas quatro anos. Mesmo assim, penso que foi uma experiência frutífera. Tanto quanto com certas relações de amizade, uma das quais me enviou o mais lindo buquê de flores que já recebi em minha vida, sendo que o melhor presente que me deu, na verdade, foi saber que finalmente conseguira desatar o nó que entravava a sua vida.

    Os inúmeros posts que aqui estavam, foram para o rascunho. Um dia, talvez voltem. Um psicólogo, trabalhando como psicoterapeuta em Belo Horizonte, me escreveu que "adorou tudo" e um de meus comentários lhe deu idéias em relação a um paciente. Ocorreu a ele que outros profissionais poderiam recorrer ao blog, enviando casos para os quais tivessem dúvidas, usando minhas considerações em seus consultórios. No final da missiva, perguntou: "sentiria-se usurpada?"

    Respondi que, de forma nenhuma. Se isto ocorresse, ao contrário, seria um ótimo sinal. Para mim, não importava se os comentários ou questões eram enviadas pelas próprias pessoas ou por seus intermediários. Em geral, certos assuntos dizem respeito a muitos. Podem aproveitar pois, em geral, mesmo especialistas, possuem as mesmas emoções e problemas. E ocorreu. Até pessoas "do ramo" se envolveram com a experiência.

  A troca é sempre enriquecedora para todos

    
    Exceto o nome ou o pseudônimo, nenhum dado (e-mail, país, cidade, etc) é obrigatório. Mas, se for deixado, não será divulgado. 

    Siga o blog, participe, dialogue, deixe o seu comentário na caixa ou envie para que seja publicado em um post. Os textos escolhidos, assim como os meus comentários, serão publicados uma vez por semana.

    E volte sempre. Conheça pessoas e outros casos que podem se parecer com o seu. A troca é sempre enriquecedora. Quem não fica feliz em ver que não está sozinho?




Perguntas que ajudam


Você pode substituir os três pontinhos por “sua mãe” ou “seu pai”:

1. ... cria escândalos ou situações constrangedoras em público?

2. ... faz chantagem emocional?

3. ... faz exigências frequentes e, às vezes, inatingíveis?

4. ... tenta lhe controlar?

5. ... o critica pela frente ou pelas costas, compara você com outros?

6. ... é indiferente ao que você diz?

7. ... tenta fazer com que se sinta culpado(a)?

8. ... mente e o manipula?

9. ... foge do assunto quando você quer conversar sobre um problema?

10. ... desrespeita seus limites emocionais e físicos?

    Se respondeu “não” a tudo, considere-se uma pessoa muito sortuda. No entanto, se respondeu “sim” ou “mais ou menos” apenas à metade das questões, é muito provável que esteja mantendo um relacionamento tóxico com algum deles, ou com os dois. O que pode causar imensos danos colaterais, alterar profundamente a sua qualidade de vida, influenciar a sua esfera emocional, e talvez até mesmo a de seus filhos e esposa (ou marido).

    "Não há margem de manobra para modificar comportamentos tóxicos de outrém"


    Ninguém tem o poder de fazer a mãe ou o pai mudar. Com muitos anos de vida, crenças e hábitos errôneos, neuroses, insegurança, traumas transgeracionais, etc – tudo isso fica enraizado para sempre. Não há margem de manobra para modificar comportamentos tóxicos de outrém. Além disso, infelizmente, o assunto é tabu, porque na nossa civilização e cultura, as figuras materna e paterna ainda são “sagradas”. Nem "fica bem" socialmente, ninguém ousa comentar. Quantos sofrem e não conseguem se liberar...

    Contudo, o reconhecimento desta realidade – com força e perseverança – assim como a identificação do mal que um ou os dois genitores nos causam, permitem-nos vislumbrar o caminho da liberdade e adquirir, aos poucos, autonomia e independência totais. Ou seja, levam-nos a nunca mais depender de seu olhar, julgamento, aprovação, consideração ou opinião. Nem mesmo de seu amor ou desamor.

    Eis o que significa “matar”: separar o genitor verdadeiro daquele que foi contruído em nossa cabeça, alma e coração. Uma construção à qual fomos obrigados - por neurose, conveniência e necessidade - porém, da qual, finalmente, ficamos livres. E, só assim, prontos para uma excelente relação, sem sofrimento, com quem nos gerou.

Até mais, este espaço é seu!